Selecionei esse Texto de CRISTIANE SEGATTO, repórter que escreve sobre Medicina na Revista Época, que comenta o filme Cisne Negro!
“Muita gente correu aos cinemas para conferir Cisne Negro desde que Natalie Portman ganhou o Oscar de melhor atriz.
A festa de Hollywood é passado, mas a questão central despertada pelo filme continuará atualíssima por muito tempo.
É por isso que resolvi falar sobre ela na coluna de hoje. Saí do cinema completamente impactada pelo auge da loucura da bailarina obcecada pela perfeição.
Vou logo avisando: se você pretende assistir ao filme talvez seja melhor fugir deste texto.
Não vou resistir a comentar o fim, o meio, o começo – nessa ou em outra ordem.
Se já o assistiu ou não pretende encarar o turbilhão emocional provocado nos espectadores, siga em frente.
Depois me diga se entendi direito ou se delirei junto com a personagem brilhantemente interpretada por Natalie.
Nina é uma bailarina dedicada que se esforça além da conta para atingir a perfeição técnica.
Em uma das cenas, o diretor da companhia diz que ela é tecnicamente perfeita, mas incapaz de sentir.
Tinha técnica e nenhuma vida.
Outra bailarina, que Nina passa a enxergar como rival em seus delírios persecutórios, é o oposto: está longe de ser tecnicamente perfeita. Mas quando dança, sente.
O maior desafio de Nina é interpretar os dois cisnes – o branco e o negro – no clássico O Lago dos Cisnes.
Esse é também o pesadelo do diretor.
Nina é um primor como o cisne branco, mas não convence na pele do cisne negro.
O papel que a bailarina precisa desempenhar toma conta de sua vida.
O espectador assiste, aos sobressaltos, a transformação da moça doce, pura e inocente numa pessoa descontrolada, agressiva, ensandecida.
Cisne Negro não é uma fábula estapafúrdia.
Ele nos toca justamente porque é verossímil.
Ninguém precisa ser uma bailarina na competitiva batalha pelo melhor papel para despencar naquele abismo.
O filme é quase um aviso: “Ei, todos nós somos cisnes brancos e negros”.
A linha que separa os dois é tênue e fluida.
Nina não parece ser psicopata – aquele tipo de pessoa perversa, desprovida de culpa e capaz de passar por cima de qualquer ser humano para satisfazer os próprios interesses.
Para gente assim não existe cura. Só cadeia.
A bailarina me fez lembrar de quem sofre de algo mais frequente: o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Para muita gente, TOC é a doença de quem pratica atos repetitivos como checar sete vezes se a torneira está fechada antes de sair de casa.
Não é só isso.
O distúrbio tem diferentes nuances e gradientes.
No convívio social, pode passar despercebido.
Um colega de escola, de trabalho, um amigo querido, a mulher, o marido pode estar passando por isso agora mesmo sem que você se dê conta.
“O perfeccionismo é muito característico desse tipo de transtorno”, diz a psicóloga Patricia Vieira Spada, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Tudo tem que estar no lugar porque a pessoa não suporta lidar com as surpresas da vida.”
Como Nina, quem sofre desse transtorno de ansiedade tem preocupações excessivas, desconforto, medo, aflições, depressão.
A perfeição é um falso porto seguro.
Para não sentir, para não ter afeto, tudo precisa estar sob controle.
Ter afeto é lidar com a imprevisibilidade das relações humanas.
Ninguém sabe o que vem pela frente.
Não ter resposta é dolorido, mas é preciso saber suportar a dúvida.
O desfecho da história da bailarina é clássico.
Reprimida pela mãe e por ela mesma, perde o controle sobre a impulsividade.
Torna-se um bicho agressivo, psicótico, atormentado por alucinações.
“É importante conhecer o cisne negro que existe dentro de cada um de nós”, diz Patricia. “Perigoso é negá-lo.”
Precisamos nos conhecer, entrar em contato com nossa fragilidade.
“Beber desesperadamente como tantos jovens fazem é anestesia cerebral.
Embriagado, ninguém pode pensar.
Isso é investimento constante em cisne negro”, diz Patricia.
A decadência de Nina nos atinge em cheio.
Quem não almeja o sucesso?
Quem não batalha para chegar o mais próximo possível de um desempenho perfeito?
A partir de quando o perfeccionismo se torna patológico?
Segundo Patricia, ele é comum em pessoas que se sentem no centro do Universo.
O sujeito se acha tão importante, tão único, tão insubstituível que não aceita exercer – seja lá o que for – com exatidão.
Quantas pessoas você conhece que agem exatamente assim?
Essa característica pessoal mal administrada passa a ser um problema quando compromete o convívio social ou a saúde – física, mental ou emocional.
Nina alcançou aquilo que julgava ser a perfeição.
Mas não pôde receber o reconhecimento da platéia. “